Um grão de areia
Edição de número zero: a possibilidade de pensar, cogitar, imaginar, planejar
Para ler ouvindo: Skinny Love, de Bon Iver.
Em 1888, Vincent Van Gogh passou uma semana na então vila francesa de Saintes-Maries-de-la-Mer, onde produziu uma série de obras das paisagens marinhas e da cidade. A pintura acima foi uma dessas obras, que eu pude apreciar pessoalmente no Museu Van Gogh, em Amsterdam, mais de 130 anos após ela ser concebida. E lembro perfeitamente dela, dentre tantas outras peças disponíveis no museu, não só pelo traço do artista, ou pela paz que a cena gera no interlocutor, mas porque posicionado acima da tela está um microscópio.
Essa obra, como diversas outras do Van Gogh, foi pintada ao vivo, em campo. Nesse caso, o campo foi uma das praias da vila, para onde ele levou sua tela, suas tintas e espátulas — nessa obra, os pincéis foram substituídos em prol do efeito tridimensional tão característico das pinturas de Vincent. O microscópio disponibilizado no museu aponta para um detalhe cuja visão, imagino, carregarei para o túmulo na memória: os grãos de areia incrustados na tela.
E não há nada de sobrenatural nisso.
Na praia há grãos de areia, o artista levou a tela para a praia, os grãos ficaram presos na tela por conta do vento. Eu nasci em uma cidade praiana, areia não é nada de incomum pra mim. Também já havia visto a obra pela internet, então não foi uma grande surpresa tê-la, pessoalmente, diante dos meus quatro olhos. Ainda assim, o momento me impactou de uma forma inesquecível.
Estar no Museu Van Gogh, em um domingo de manhã, após tomar um café holandês (na Holanda!!!), ouvindo a história de um artista que tanto admiro no radinho disponibilizado aos visitantes — que, pasmem, tinha nas opções de tradução apenas o português do Brasil, e não o de Portugal — enquanto explorava tantas obras que só conhecia por uma tela de LCD foi, com toda certeza, o momento mais emblemático do meu ano. A palpabilidade desses grãos foi um lembrete de que aquele instante era real, de que o plano funcionou. E as coisas funcionarem, hoje em dia, é de se celebrar.

Há mais de um século, em uma viagem para tentar se recuperar de uma doença, um holandês nascido em uma família de classe média alta que impactou o pós-impressionismo e a arte do mundo inteiro produziu uma obra linda e, por algum descuido, não percebeu que havia grãos de areia incrustados na sua tela. Ou percebeu, e, com sua originalidade, permitiu que ali ficassem.
Muitos anos depois, no museu dedicado a ele (que, mesmo competindo com o Museu da Heineken, ainda é o melhor de Amsterdam), uma menina nascida em uma família de classe média baixa, que não impactou e nem deseja impactar tanto o mundo assim, se emocionou com a união do traço e do acaso que destaca essa obra.
Refletindo, percebo que o motivo da minha euforia ao encontrar esse bendito microscópio foi de que o conjunto dos acontecimentos que me levou até esse quadro, acima de tudo, era impensável para mim dois anos atrás. Porque se digo impossível, parto do pressuposto de que pensei sobre isso. E, nesse caso, nem pela cabeça a ideia de conhecer Amsterdam, o Museu Van Gogh e The sea at les Saintes-Maries-de-la-Mer havia passado. Aquele momento foi especial porque me apresentou a possibilidade de pensar, cogitar, imaginar, planejar.
A minha retrospectiva do ano, nesses dias finais de dezembro, parte do grão de areia na tela e passa pelo microscópio, pelo profissional que pensou no desenvolvimento dessa experiência sensorial, pelas bicicletas em Amsterdam e também em São Paulo, pelas coisas lindas que meus olhos puderam ver pela primeira vez, pelas oportunidades que agarrei e proporcionei a mim mesma, jamais imaginadas. Passa pela arte, pela literatura, pelo carinho com o qual tratei e fui tratada, pelos sonhos que pude sonhar. E chega até essa newsletter, que representa tanta coisa legal pra quem eu fui e sou.
Em 2024, não realizei todas as metas e passei longe da maioria dos meus objetivos. Mas, apesar de cansada, pude aprender a possibilidade do pensar — e é isso, também, que desejo para você que me lê.
“Artistas como eu estão navegando em alto mar em nossos pequenos e miseráveis barcos, isolados nas grandes ondas do tempo.”
Vincent, em carta para seu irmão Theo, algumas semanas após retornar de Saintes-Maries-de-la-Mer (1888).
que lindo! feliz de te ler por aqui
Que delicadeza de texto, amiga <3 ter se dedicado há algo tão específico e tão singelo que precisa de um microscópio para perceber fez com que me sentisse mais lá com você do que se tivesse me falado de todas suas paradas por Amsterdam