e eu não sou humana?
edição de número dois: um relato pessoal em meio à semana mais quente da literatura brasileira contemporânea

caso você ainda não tenha lido/ouvido as últimas notícias do meio literário brasileiro contemporâneo, sugiro que veja antes dessa leitura. aqui está o podcast “CPF na nota?”, onde a jornalista e escritora vanessa barbara relata uma situação de violência psicológica em um relacionamento passado. já no texto “prefiro ser ré a juíza”, a também escritora natércia pontes escreve sobre o outro lado da situação, como atual esposa do ex-marido de vanessa.
eu já me relacionei com uma pessoa que tinha seu grupo da brotheragem no whatsapp. todos na faixa dos seus 30 a 40 anos. a maioria homens, uma mulher lésbica. quase todos casados (com mulheres), alguns com filhos (e filhas). o conteúdo variava entre comentários fervorosos sobre um carro italiano de 2 portas que mais parece o carro da barbie e muitas, mas muitas mídias de mulheres sem uma pecinha de roupa sequer no corpo. fotos, vídeos, gifs, stickers e o que mais o whatsapp oferecesse como recurso visual estava contaminado com imagens de mulheres artificialmente modificadas, que, devo mencionar, não se pareciam sequer com a esposa mais “conservada” do grupo.
não era só sobre isso que eles conversavam, é claro. adultério (ou a possibilidade de) era um tema recorrente. fazer um “bullying do bem” com um dos membros do grupo que se relacionava com uma mulher mais velha também. e me recorre agora mesmo, depois de eu ter passado o dia inteiro tentando lembrar, qual era o nome do grupo: armário — sim, pra que quem se sentisse tentado a sair fosse lembrado: “fulano saiu do armário”.
nesse grupo, o meu antigo companheiro, de quem não guardo ressentimento algum e desejo que seja muito feliz, compartilhava informações que eu pedia explicitamente que não fossem compartilhadas. falava de tópicos delicados relacionados à minha família (o que fez com que, no relacionamento seguinte, eu abrisse pouquíssimo desse assunto), de acontecimentos ocorridos entre nós que juramos não contar pra ninguém. e falava das suas viagens a trabalho, onde sempre tinha uma mulher-mais-bonita-que-eu que deixava ele tentado. ele não fazia nada, até onde sei, mas precisava compartilhar com os parça, né?
a existência desse grupo foi motivo de diversas brigas, ainda no começo do relacionamento. influenciou, também, pra que o namoro se tornasse tóxico para os dois lados, o que não tenho problemas em admitir. quanto mais descobria essas questões, pior eu me tornava. atingi um nível de insegurança (por saber que poderia perder meu amado namorado pra qualquer mulher-mais-bonita-que-eu) que tenho vergonha de lembrar. tinha crise de ansiedade toda vez que abria o celular dele, porque quase sempre encontrava algo que não queria encontrar e dava um show com direito a todos os artifícios que nós, barraqueiras, temos direito. surtava com e também sem motivo, muitas e muitas vezes. apelei pra uma violência que pouco reconheço em mim hoje, mas que existiu em algum momento do passado e isso não há como apagar. me tornei dependente emocional e mantive acorrentado a mim uma pessoa que, claramente, não gostava de mim daquele jeito há muito tempo.
nosso relacionamento começou da pior forma possível, num poço de desconfiança, e assim se manteve por anos. de um lado, o desejo insaciável por atenção. de outro, uma menina sem muita noção de mundo e sem um pingo de inteligência emocional, sem terapia e sem perspectiva de um futuro como par. parecia não haver como se desvencilhar dessa situação, por mais que os dois tenham tentado incontáveis vezes.
até que, enfim, terminamos. depois do término (e de eu ter parado de correr atrás dele, o que fiz pavorosamente), conversamos algumas vezes. nos encontramos, trocamos boas fofocas da área em que trabalhamos. os meus surtos influenciaram (e muito) os relacionamentos seguintes dele, assim como o patamar de comparação com uma mulher-mais-bonita-que-eu em que sempre estive também me marcou.
o que não dá pra negar é que eu e ele fomos bons amigos, mas péssimos companheiros. apesar de sermos felizes juntos, na maior parte do tempo, minha confiança foi traída inúmeras vezes, me sentia triste e desamparada e o sentimento de inferioridade era latente. quando percebi que minha vida estava se tornando um inferno e que era quase impossível sair dele, como boa ariana que sou, chamei o diabo pra dançar, e ficamos os dois sambando num ciclo sem fim, destruindo a minha saúde mental e levando pro fundo do poço, junto comigo, o responsável por engatilhar a situação. sofri, mas garanto que também fiz sofrer. às vezes propositalmente, às vezes não, mas fiz. essa foi a forma que encontrei de lidar com a situação, e não acho que seja a forma mais correta ou a mais errada, foi apenas a minha forma.
e, assim, se conta uma história trazendo os dois lados da moeda.

eu não morri por ter a confiança traída ou por ver meu parceiro compartilhar questões privadas no seu grupo de amigos, mas isso me marca até hoje. do mesmo jeito, ele não morreu por levar um belo cagaço de uma menina com metade do peso dele, mas acho que não gostaria de passar por isso novamente. a falta de bom senso, a manipulação e a vontade de desgraçar a vida do outro foram comuns aos dois lados, o que é extremamente infeliz, mas é a verdade.
hoje tenho um relacionamento que me rendeu, nas primeiras sessões de terapia sobre ele, repetidas conversas preocupadíssimas com o término, que eu tinha certeza que viria a qualquer momento por um surto meu. meu atual namorado (que quase já chamo de marido) é uma pessoa incrível, que não tem grupos privados com amigos no whatsapp (aleluia!) e que ontem ficou triste porque eu quis testar uma noite de sono sozinha no nosso sofá novo. com alguma frequência vejo-o perto de uma mulher-mais-bonita-que-eu e sinto absolutamente nada, porque confio na nossa relação. pode parecer ingenuidade, mas confio. e confio, mas com ressalvas.
sabendo que ele é um homem, cabe pensar que a qualquer momento alguém pode, com razão ou não, acusá-lo de alguma coisa. vai ser difícil acreditar pois, pasmem, a convivência nos leva a enxergar o momento atual, e, neste momento atual, meu companheiro nunca demonstrou qualquer ação suspeita — ou red flag, como dizem os jovens. difícil, mas não impossível. e sabemos, ambos, que por mais que eu o ame imensamente, o compromisso que tenho com quem sou é primordial.
conto essa história, abrindo o meu coração, após ser bombardeada nos últimos dias pelos relatos da vanessa e da natércia, que, embora possam ter se tornado uma briga de pracinha de interior, com direito a puxão de cabelo e dedo no olho (virtualmente), estão relacionados a um homem. um homem aparentemente covarde (digo aparentemente pois não o conheço e só posso julgá-lo por suas ações visíveis: um texto de desculpas medíocre à la inteligência artificial generativa) que feriu psicologicamente, junto ao seu grupo da brotheragem, uma mulher (e várias outras, pelo que consta nos autos), há 14 anos. atualmente, esse homem é dono de uma editora fantástica, bom marido e bom pai de duas meninas lindas. parece contraditório, mas, pasmem, as duas realidades podem coexistir. em tempos diferentes, mas podem.
vanessa decidiu, depois de pincelar outras vezes em outros canais, abrir seu passado para falar sobre a manipulação de um antigo casamento e de uma traição do seu cônjuge e de homens que ela considerava amigos. vanessa, é possível, não soube lidar com esse trauma (assim como muitas de nós não sabemos) e parece ter contatado o ex-marido algumas vezes, sobre assuntos profissionais. não parece com a história que contei agora há pouco?
natércia, esposa de andré (o ex-marido traidor) e mãe das duas meninas lindas, estava, para usar a palavra mais suave, desconfortável com a situação. tentou manter-se à parte de tudo, mas, ah, mulheres! por que sempre fazemos isso? não tiro a razão dela de ter se enfurecido ao ver seu marido (alguém com quem divide a vida há muitos anos) ser julgado por algo que fez há tanto tempo (por mais que, naquela época, seu marido já tivesse muito mais que a idade civil para ser julgado pelos próprios atos).
o meu ponto é que vanessa e natércia trouxeram apenas seus lados, mesmo sabendo do outro. se ouvirmos o relato de uma ou lermos o da outra, sem conhecer a história, vamos ter certeza: meu lado está definido! sabendo dos dois lados (e não sendo amiga pessoal de nenhum deles), é impossível tomar partido.
que tipo de feminismo é esse que me permite validar a dor de uma mulher e escorraçar a outra? quem de nós nunca foi atrás de um(a) ex depois que terminou o relacionamento? quem de nós nunca sentiu tanta raiva que falou e fez besteira? quem de nós nunca contou uma história que beneficiava só o nosso lado? a mulher que nunca cometeu qualquer um dos erros citados anteriormente pode passar no guichê ao lado e retirar sua carteirinha de mentirosa profissional (e aqui falo de nós, mulheres, porque essa história infelizmente se tornou sobre a gente — e porque os envolvidos do sexo masculino não têm sequer direito de defesa nesse caso). num mundo em que multibilionários saúdam o nazismo em público e permanecem impunes, você tem certeza que comentar sobre esse caso tomando um partido e ignorando a dor de outra mulher é o correto?
eu não acho, embora tenha visto homens — brancos, negros, heterossexuais, gays — julgando, como deuses, as atitudes de um lado ou de outro. queridos, como eu explico que a única coisa que vocês podem fazer aqui é colocar a mão na consciência e aprender com os erros da classe que representam? que o posicionamento de vocês, nesse caso, deveria ser para condenar os homens envolvidos, e não atacar as mulheres? é tão difícil assim entender o óbvio?
eu acho uma profunda tristeza que a vanessa tenha sofrido tanto na teia de mentiras desse grupo de homens — que, não bastasse serem homens, são homens influentes na área profissional em que ela atua. e idêntica tristeza sinto quando vejo a natércia sofrendo um pesadelo em sua rotina, com crianças envolvidas, por causa de um erro cometido por seu marido há 14 anos — infelizmente, traumas não prescrevem.
não vou entrar em aspectos específicos dessa discussão, até porque se formos levar de forma isenta, nenhuma das partes apresentou provas (embora tenhamos confissões expostas). mas não pude deixar de colocar pra fora o que senti ao me identificar com o trauma passado da vanessa e com a raiva da natércia, que a fez publicar um texto enfurecido em defesa, como ela diz, da sua família. sei que a raiva leva a gente a lugares absurdos aos quais nunca gostaríamos de ir, e, pasmem — pela, sei lá, quinta vez? — nem todo mundo tem um gestor de crise pra escrever texto bonitinho de retratação.
a gente é humano. mulheres, por mais infeliz que isso seja, parecem ser mais. enquanto humanas, erramos no posicionamento, nas palavras que usamos, no nível de raiva que deixamos transparecer e influenciar nossos atos. e, enquanto humanas, é prudente que nos permitam errar, não é?
enquanto isso, o grupo da brotheragem (a partir daqui vou chamá-los reptilianos!) segue ileso. é este grupo, que teve liberdade pra errar por tantos séculos, que não deve receber nosso perdão. e, se receber, que seja com ciência da insistência no erro, e nunca com a transferência da culpa que eles carregam para outras mulheres.
aos amantes da literatura brasileira contemporânea: é uma pena e uma perda imensa pra nós, mas também um lembrete, pois, mais do que nunca, é preciso que estejamos atentos ao que consumimos. à vanessa e à natércia: desejo de verdade que fiquem em paz consigo mesmas e entre si. ao meu namorado joão: é legal demais encontrar um dos homens que veio com defeito de fábrica e ter um jantar prontinho esperando por mim quando chego em casa. ao meu antigo companheiro: não sei por que quisemos transformar uma amizade tão legal em um relacionamento que jamais poderia funcionar, mas que bom que pudemos lidar com as consequências dos nossos atos de forma adulta. aos reptilianos citados no final do texto: não costumava lê-los e agora mesmo é que não mudarei isso. e aos reptilianos citados no início: eu quero mais é que vocês peguem seus carrinhos da barbie e se dirijam à concorridíssima casa do baralho.
O início do teu texto me lembrou muito este aqui: https://open.substack.com/pub/fernandachazan/p/este-nao-e-um-texto-sobre-donald?r=2yfktz&utm_campaign=post&utm_medium=web&showWelcomeOnShare=false